US$ 30 milhões para reinventar a roda
Tenho pensado e lido um bocado a respeito da Free Our Feeds, uma campanha para “salvar as redes sociais da captura por bilionários”. / freeourfeeds.com A Free Our Feeds consiste em um grupo de especialistas disposto a levantar US$ 30 milhões via doações, em um intervalo de três anos, para criar uma fundação e “transformar a tecnologia […]
Tenho pensado e lido um bocado a respeito da Free Our Feeds, uma campanha para “salvar as redes sociais da captura por bilionários”. / freeourfeeds.com
A Free Our Feeds consiste em um grupo de especialistas disposto a levantar US$ 30 milhões via doações, em um intervalo de três anos, para criar uma fundação e “transformar a tecnologia fundamental do Bluesky — o protocolo AT — em algo mais poderoso que um único app”.
É um fim nobre, porém pouco original. No site do Bluesky, uma das primeiras frases da capa diz:
As redes sociais são muito importantes para serem controlada por algumas poucas empresas. Estamos construindo uma base aberta para a internet social de modo que todos possamos moldar seu futuro. / bsky.social
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O site da Free Our Feeds é estranho. Não há documentos nem nada que remeta a algo oficial, sério. Existem fotos de várias pessoas, um manifesto e uma seção de perguntas e respostas com promessas vagas e informações superficiais.
A Free Our Feeds ainda não tem uma “PJ” constituída. Os fundos arrecadados serão guardados por um “patrocinador fiscal”, a Development Gateway, empresa sem fins lucrativos sediada nos Estados Unidos. A meta é levantar pelo menos US$ 4 milhões em 2025 para montar a estrutura burocrática até o fim do ano.
Signatários da Free Our Feeds emprestam prestígio à iniciativa. Entre os pesos-pesados estão Jimmy Wales (fundador da Wikipédia), Shoshana Zuboff (pesquisadora, autora de A era do capitalismo de vigilância), artistas como Mark Ruffalo e Brian Eno, o investidor-ativista Roger McNamee e Cory Doctorow, talvez o escritor mais prolífico do gênero “gente insatisfeita com a big tech”.
Cory escreveu um textão em seu blog nesta quarta (15). Um texto que achei sem lógica, atípico vindo de alguém que admiro e de quem os textos que leio sempre me deixam invejoso (“queria ter escrito/pensado isso”).
Após enaltecer vários acertos recentes do Mastodon, principal aplicação do protocolo ActivityPub, “rival” do protocolo AT, e criticar a promessa de descentralização não cumprida até hoje pelo Bluesky, Cory sugere que a saída, via Free Our Feeds, é… gastar US$ 30 milhões para reinventar a roda no Bluesky. Mastodon? Quê? / pluralistic.net (em inglês)
O paralelo que o autor faz com a investida da indústria fonográfica contra usuários do Napster, na virada do milênio, é imprecisa e injusta. A analogia entre portabilidade de dados e saídas de incêndio em boates, idem.
É como se estivéssemos do lado de fora da balada ruim e sem saídas de incêndio da Meta, depois dos seguranças baterem em alguns inocentes, vendo duas casas recém-inauguradas do outro lado da rua: uma com saídas de incêndio prontas (Mastodon/ActivityPub), outra sem (Bluesky). Aonde vamos? Para Cory e a Free Our Feeds, deveríamos entrar na do Bluesky e gastar uma grana para construir saídas de incêndio de dentro, com a festa rolando.
Embora afirme adorar o Mastodon, Cory compra o discurso de que todo mundo ali é chato e que as pessoas estão se divertindo à beça é no Bluesky, uma rede que, vale lembrar, até o momento é, para todos os efeitos práticos, tão descentralizada quanto o X ou o Instagram (não é)1.
O paralelo com a indústria fonográfica, também no texto dele, é de que dizer às pessoas para apostarem no Mastodon equivale aos puristas dos anos 2000 que afirmavam que a resistência ao assédio judicial das gravadoras passava por não ouvir as músicas publicadas por elas, ou seja, um bando de chatos.
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Nós já temos uma rede social à prova de bilionários. Uma que no mesmo dia em que a Free Our Feeds apareceu passando o chapéu para fazer sabe-se lá o quê dentro do Bluesky, deu um passo concreto para consolidar a blindagem contra o capital ao anunciar uma nova estrutura de governança, também sem fins lucrativos, que tirará do fundador e atual CEO, Eugen Rochko, a palavra final dentro do projeto. / blog.joinmastodon.org (em inglês)
Eugen nunca aceitou capital de risco, ao contrário do Bluesky que, menos de três meses após levantar US$ 15 milhões de uma firma que — sem zoeira — se chama Blockchain, está no mercado pedindo mais dinheiro para investidores. / businessinsider.com
Após o anúncio da nova estrutura organizacional, Eugen escreveu um fio em seu perfil pessoal:
Não tenho uma opinião muito elevada de mim mesmo como CEO e sempre imagino onde o Mastodon poderia estar hoje se eu não fosse um grande introvertido, mas gosto de pensar que também minha gestão também também teve qualidades redentoras. / @Gargron@mastodon.social (em inglês)
Todos os episódios questionáveis envolvendo o Bluesky, e o tanto que quase todos que se dizem insatisfeitos com o X ou com a Meta ignoram o Mastodon, me fazem pensar…
Talvez Eugen ser “um grande introvertido” seja a exata razão do Mastodon ser o que é (a realização de uma promessa, de uma visão) e de, mesmo assim, ser tão ignorado.
O Bluesky soa como a melhor solução a que alguém preso às dinâmicas do Vale do Silício e do capitalismo de risco poderia chegar. É insuficiente, é limitado. Falta a essa galera “pensar fora da caixa”, como dizem (acho?) nesse meio.
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Eu não duvido das intenções e da boa índole dos envolvidos na Free Our Feeds e no Bluesky. Acho ótimo que milhões de pessoas estejam se divertindo por lá, mas já vi esse filme por vezes demais. Estou cansado. Nem planejava escrever esse texto; que bom que ele saiu.
Parece que as pessoas dizem querer uma coisa, mas na prática a rejeitam quando lhes é oferecida. Mais ou menos como quem diz que gostaria de se alimentar melhor, mas não resiste a um Big Mac? E não digo isso para recriminar os fãs de sanduíche ruim ou de redes sociais pseudo-descentralizadas. Eu também tenho meus dias de desejar um dogão. (Que dogão prensado é melhor que Big Mac, isso eu acho indiscutível!)
Talvez seja da natureza humana ansiar por coisas boas, mas na hora do vamos ver deleitar-se com podreiras. Viva o Bluesky?
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Se você quiser dar uma (ou outra) chance ao Mastodon, o arquivo do Manual tem um guia simples e direto para usar (e curtir) o Mastodon. Divirta-se!
- Muito do que torna o Mastodon “difícil” é a descentralização, aliás, mas não vou entrar (de novo) nessa discussão. ↩
Qual a Sua Reação?